16 de março de 2013

O remédio para todos os males do intelecto

 
Tá certo que não se pode exigir muito das pessoas (infelizmente, de certa forma, eu diria), mas é fato que certos ambientes acadêmicos têm sido comumente criticados por terem pouco compromisso com ciência e filosofia, e demasiado apego ao senso comum e a ideias pouco elaboradas (crítica e racionalmente), como se a academia não estivesse cumprindo adequadamente seu papel.

Pois é. Se eu estiver certo no texto que segue, que cessem as lamentações sobre a pouca qualidade e compromisso de nossos acadêmicos, pois o senso comum tem sido amplamente utilizado mesmo nos ambientes em que se insiste em criticá-los.

Não que eu seja um completo inimigo do senso comum. A meu ver, trata-se de um conhecimento popular e rico, que tem suas áreas de aplicação. Contudo, acredito que devam excluir-se de seu uso as áreas cuja aplicação mais adequada seja indicada à ciência ou à filosofia. Afinal, como dizem, "a casa do palpite é a casa ao lado"...

É do senso comum a possibilidade de incoerência discursiva (afinal, os ditos populares aplicam-se a qualquer situação, sejam em um sentido ou no seu sentido contrário). Não há método racional (provavelmente não haja qualquer outro método), tampouco compromisso com a coerência e a lógica. Bem, talvez não precise, dado ao que se aplica. E cada um aplica mais ou menos, conforme a possibilidade ou capacidade de aplicar sistemas de conhecimento mais complexos e adequados à compreensão da realidade.

Contudo, apesar de meu alto grau de tolerância, acredito que haja assuntos em que deveríamos mesmo evitá-lo. Pensando bem, não consigo achar outra área do conhecimento a aplicá-lo além do futebol e da culinária... (será que estou sendo injusto? Ou talvez exigente demais? talvez haja outras áreas...) Vejamos...

No meio acadêmico do Direito, é comum conversarmos sobre temas atinentes ao Direito. Se devemos considerá-lo como ciência, ideologia ou mesmo arte, esta discussão por si só teria um caráter filosófico (ou científico...). E o senso comum? Acho que não, parece que em nada contribuiria (salvo engano... - o que ora admito por pura filosofia).

Mas o que eu vim tratar mesmo é das "panaceias" enlatadas, adquiridas no "mercado" dos discursos. Seriam as panaceias discursivas científicas? ou filosóficas? Parece que nenhum dos dois. E como "panaceia discursiva" me refiro a um sem número de frases, pretensamente eruditas, que na verdade tratam-se de meras muletas discursivas, por encaixarem-se com facilidade em várias situações, ainda que grandemente diversas entre si.

Exemplos.

Máximas como "nem tanto ao céu nem tanto à terra", acho graça quando ouço. Não por não fazer sentido, mas por ser aplicável a praticamente tudo que seja polêmico ou paradoxal que se esteja discutindo. E, por aplicar-se a tudo, talvez não se aplique a nada. É mais ou menos como a máxima de que algo que sempre parecerá uma mentira (ainda que não o seja), não poderá ser considerado com seriedade. Um exemplo deste tipo de "mentira presumida" é quando um candidato diz de si mesmo que é "o melhor". Talvez ele até seja mesmo, mas a opinião externada por ele próprio é tão suspeita que não pode ser considerada com seriedade (por pessoas minimamente responsáveis), devendo-se buscar outros elementos além do próprio discurso daquele que é diretamente interessado. Isso é o que eu quero dizer quando afirmo que algumas coisas valem tanto como este tipo de "mentira presumida".

Uma delas são as panaceias enlatadas do tipo "nem tanto ao céu nem tanto à terra" (que cumpre o mesmo papel das máximas "tudo é relativo", "não sou tão radical" ou qualquer expressão do gênero). Grosso modo, trata-se da panaceia do meio-termo (falsa, do ponto de vista lógico-racional, por ser tão irrealizável na prática quanto os extremos que critica, comumente pendendo mais para um do que para outro lado, apesar de não declará-lo). Não digo que não possa ser de fato aplicável n'alguns casos (o conservador Aristóteles está aí pregando o meio-termo desde a Antiguidade). E não se pode perder de vista que tudo aquilo que não está no exato extremo (sempre difícil de identificar), estará entre os extremos, ou seja, pode facilmente ser considerado "meio" entre os extremos (e tecnicamente sempre pode haver algo ainda "mais extremo", deslocando o ponto de referência). O mesmo se dá em relação ao "não sou tão radical". Caso um regime totalitário tenha matado um milhão de pessoas, o indivíduo que diz "não sou tão radical", poderia acrescentar que mataria só umas cem mil pessoas... Aplicável a tudo, não se aplica a nada.

Mas acredito que quem usa essas expressões, pensa honestamente (assim imagino) que esteja resolvendo alguma questão e, de quebra, demonstrando "bom senso". Panaceia por trata-se mesmo de ferramenta de aplicação quase absoluta. De fato, por servir como uma "mentira presumida", acaba sendo apenas uma sentença de quem não tem uma posição clara a respeito de determinado assunto controverso (possivelmente porque sequer tenha parado pra pensar a respeito). Mas, aos ingênuos, serve de fato como resposta "adequada" pra praticamente todos os casos (desde a possibilidade de aplicação de castigos corporais aos filhos, ou a intervenção do Estado na economia, ou o reconhecimento de direitos sociais, etc.). Talvez não sirva tanto para assuntos mais extremos, mas esses costumam ser minoritários. Assim, acaba sendo uma panaceia eficaz, possível de aplicar a praticamente todos os casos: não ser "tão radical". O bom e velho "meio-termo".

Outra que me faz graça é contestar um opositor argumentativo afirmando que o exemplo por ele citado "é diferente". Nem precisa muito esforço. Quando alguém faz uma comparação com algo que tecnicamente desmontaria seu argumento, é só afirmar que "é diferente". Considerando que mesmo entre objetos com alto grau de semelhança haja ainda uma infinidade de diferenças (que você pode considerar "fundamentais", a seu critério), essa sentença é quase sempre encaixável, sempre que quisermos escapar de uma enrascada argumentativa para o qual não estávamos devidamente preparados.

Outra é negar a validade das fontes que trazem informações que nos contrariam. A estratégia de colocar em dúvida a credibilidade de algo ou alguém é popularmente conhecida na lógica argumentativa (falácia ad hominem). É, sem dúvida, a maneira mais eficiente de poder dizer "qualquer coisa sobre qualquer coisa". Afinal, basta desacreditar qualquer fonte trazida por nosso opositor, não importando o absurdo que possa parecer (é possível e até comum colocar-se em xeque os próprios dicionários, como forma de fazer crer que o nosso entendimento é o que está correto, e os dicionários errados - seja por alegada "falta de qualidade" da obra ou até mesmo por alegadas questões "ideológicas" dos dicionaristas...).

A questão ideológica é, em si, outra panaceia. Para mostrar nossa pretensa "criticidade" em relação à algo, basta lançar a acusação de "comprometimento ideológico" (ad hominem também). Essa talvez seja a mais absoluta de todas as panaceias, pois não imagino neste momento onde não se a possa aplicar (afinal, a música "Ilariê" da Xuxa pode ser acusada de "comprometimento ideológico"...). Normalmente, pessoas ou entidades com a qual discordamos podem ser acusadas de "comprometimento ideológico" indiscriminadamente, sem mesmo a necessidade de apontar exatamente qual o grupo em relação ao qual se comprometem (mas também podemos citar qualquer grupo que nos interesse, independente de provas concretas). Ou disso ou da própria "corrupção". É o que eu chamo de "lógica de futebol" (se nosso time perdeu certamente é porque houve roubo - ou alguém foi comprado - ou então os assistentes do jogo, como juízes, bandeirinhas, etc., tem "comprometimento ideológico" com o time adversário - o mesmo se aplica aos julgadores deste ou daquele caso). Trata-se de um nível menos patológico da chamada "teoria da conspiração". Penso que há de fato os que acreditam nessa argumentação (e em alguns casos - minoritários, a meu ver - pode até ser coincidentemente verdade). Mas é de fato uma questão de fé, um dogma, uma vez que não é possível provar o contrário - ainda que se tenha como provar o contrário (mas a evidência poderá ser questionada em sua credibilidade enquanto fonte, ou então ser mais um caso de "comprometimento ideológico", etc.). De toda forma, não é incomum que uma mesma pessoa ou entidade seja acusada de "comprometimento" (ideológico ou por corrupção) mesmo em relação a ideologias opostas (conforme o interesse do acusador). Lembro que instituições como nosso Supremo Tribunal Federal é comumente acusado tanto de ser "liberal" como "conservador", "marxista" ou "fascista" (termos diametralmente opostos), assim como os governos ou as emissoras de TV, ONGs, etc... Como disse, há muito de dogma e fé em afirmações retóricas pretensamente "críticas" provindas do senso comum. Talvez as pessoas normais não compreendam que o mundo pode ser um pouco mais complexo, mormente quando são múltiplos os agentes envolvidos e a dialética das situações concretas. Mas o alegado "comprometimento", seja por "corrupção" ou "ideologia", continua sendo das melhores panaceias retóricas a serem usadas, de forma indiscriminada, quando não tivermos opinião melhor sobre algum assunto. Volto a dizer, não por ser necessariamente falsa a imputação, mas por não resolver a questão, sendo o mesmo caso da "mentira presumida" (que pode ser verdade, mas que não funciona pela sua própria aparência e natureza).

Importante ressaltar ainda que o senso comum resolve as discussões com meras alegações, não com evidências concretas (aí seria exigir demais, pois pesquisa séria cansa - e já deixaria de ser senso comum).

Alguns "sensos comuns" são também bastante úteis às panaceias discursivas. Principalmente se relacionadas às ditas "teorias da conspiração". A busca por explicações simples (navalha de Occam) não é indicada no senso comum. Prefere-se explicações escabrosas, obscuras, preferencialmente envolvendo bastidores, acertos, conspirações, etc. Algo parecido com a tal "conspiração judaico-financeira marxista" utilizada pelo nazismo, ou então a tese do "marxismo cultural" apregoada pelos católicos, ou a "ditadura gay" (ou "complô" gay) utilizada pelos conservadores sociais em geral. Para as alas à esquerda, da mesma forma, os lugares comuns em relação ao "FMI", "imperialismo", TV Globo (essa um eterno motivo de divergência entre os que a acusam de liberalismo, conservadorismo, petismo, anti-petismo, catolicismo, anti-catolicismo) etc.


O senso comum tende ao maniqueísmo. Ao identificar um dos lados como o "mal", jamais se identificará como fazendo parte deste lado, ainda que, com base nas características objetivas aplicáveis (quando aplicados os critérios adequados de conceituação), ele possa estar mais próximo deste (por haver mais semelhanças que diferenças nos valores defendidos) do que do lado que ele considera "idealisticamente" o lado "do bem". Isso ocorre basicamente por possuir uma imagem fantasiosa e equivocada sobre os lados em disputa. Os equívocos de definição levam ao senso comum julgar "espectros" idealizados, e não fatos concretos. Pode-se dizer, de forma simplificada, que é comum ao senso comum falar de coisas de que não entende. Muitas vezes sentindo-se até mesmo como autoridade no assunto (uma questão de autoestima). Todos querem ter opinião, poucos querem pesquisar.

Mas, no fundo, sei que deve haver motivo para tudo isso. E o motivo que eu indico é a falta de pesquisa, séria e comprometida. Tá certo que a todos é dado o direito de opinião (confesso que ainda não resolvi a questão da "opinião do ignorante", tese antiga pra mim e que pretendo tratar assim que possível). Mas em nome da melhor tradição de busca pela veracidade dos fatos (ainda que não seja a "obsessão pela verdade" que costumo aplicar a mim mesmo), penso que não custa uma mínima pesquisa, caso queiramos ter opiniões mais embasadas - ou até que mereçam ser levadas a sério. Sei também que muitos conceitos não são fáceis de aprender e alguns de fato exigem um pouco mais do que mera iniciação. Sou o exemplo concreto de cansativas tentativas de elucidação para chegar a consensos semânticos, enquanto as idiossincrasias tendem a prevalecer aos consensos cientificamente elaborados. Infelizmente, pois o uso correto dos conceitos ajudaria a melhor entendermos a realidade. Se é que queremos entendê-la. Talvez só queiramos falar "qualquer coisa sobre qualquer coisa", como forma de trabalhar nossa autoestima, aceitação e sociabilidade (ainda que isso implique admitir um certo relativismo, simplesmente por não querermos sacrificar as definições equivocadas em que tradicionalmente acreditamos). Mas em muitas vezes não é isso que parece. Às vezes ganha mesmo a pretensão de a discussão se dar por motivo de "cidadania" ou compromisso com a "educação". Se for pelo relaxamento, então infelizmente não se poderá exigir grande comprometimento. Mas se houver algo de compromisso com educação e cidadania, aí penso que pode ser exigido maior comprometimento, até mesmo para que não se alcance efeito inverso, de deseducação por conta de informações inverídicas (muitos questionariam se existe o "verídico" - discussão complexa que só pode ser tratada se escolhermos a arena em que será abordada, que imagino não deva ser a do senso comum...).

Agora sou assim. Se me pedem um conselho, apenas um posso dar: pesquisem mais, e preferencialmente seguindo métodos lógicos, racionais e críticos. É a minha panaceia. Mas que, diferente das outras, talvez esta seja realmente eficiente a todos os males do intelecto.


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"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente

Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"


(Paulo A.C.B.Jr)